sábado, 6 de dezembro de 2008

A minha alma cai ao chão e chora










Caminhava na rua com um semblante preocupado e sorumbático. A chuva que caía não ajudava. O Congresso ía começar no dia seguinte e ele nada tinha preparado. Fora uma semana terrível na AR: o BPN, o BPP e os professores não lhe tinham dado um minuto de sossego...Era a favor da revolta social mas aquilo dos professores era demais. Até já estava farto de criticar a ministra. Na verdade, até já sentia pena da senhora...Os gajos bem podiam ir dar aulas e educação aos putos em vez de andarem nisto, já não tinha paciência, pá. Os putos cada vez sabiam menos e os gajos na rua, nas manifs, estava-lhes cá com uns nervos, pá!

É a Odete que ali vai? Ó Odete, Odete! Olha o meu amigo Bernardino!! Ó Odete, tu é que me vais safar, pá. Vê lá que não consegui preparar nada para o Congresso e não sei o que dizer.

Ó Bernardino, tu parece que nem vives neste mundo! Eu há anos que não preparo nada e ainda ninguém reparou. Pelos vistos, nem tu, pá! É que eu tenho um truque.

Ó Odete, que truque? Diz lá, pá! É que estou mesmo enrascado, pá!

Como és um camarada compincha, pá, vou-te contar como é: não sei se já tinhas reparado, mas o meu cabelo, pá, não é vermelho! Isto é pintado, pá!

A sério, Odete? É que ninguém diria..., ninguém, mesmo...mas conta lá mas é o truque!

Conto, conto, pá, então é assim: dois meses antes do congresso deixo de pintar o cabelo para que as raízes brancas fiquem bem visíveis. Isto, pá, ao ponto dos gajos lá em casa as conseguirem ver bem. No dia do congresso, por cima da roupa, visto a minha parca beige com o capuz debruado a pêlo de girafa sintético e vou discursar. Depois é canja, pá! Os gajos ficam de tal modo pasmados com a minha figura que nem ligam ao que eu digo. Digo umas coisas, sempre dentro do espírito do partido, claro, tás a ver, tipo "somos muitos, muitos mil para continuar Abril" ou "transfomar o sonho em vida" e uso e abuso das palavras "indignação", "liberdade", "direitos humanos", "malbaratado", "amordaçado" e está feito, pá! É que os gajos bem se esforçam para se concentrar no meu discurso, mas aquelas raízes brancas e o pêlo sintético de girafa não deixam. Segundos depois já estão a pensar, mas o que é que ela ali tem, será um rato?? pelo de gnu?? Estará vivo?? E aquele cabelo será dela? Se calhar é postiço, não? Não, decidamente é dela, ou não? ó mãe, aquela senhora tem uma doninha pendurada ao pescoço? Cala-te filho, o pai quer ouvir a camarada Odete (mas o que é que a mulher ali tem? O puto se calhar tem razão). E ando nisto há anos, pá, é limpinho, nunca falha!

É pá, ó Odete mas eu, pá, pintar o cabelo não queria..., o Nuno Rogeiro meteu-se nisso e já viste no que deu? O homem até anda abatido...

Foi então que se lembrou! Era isso! A camisola de riscas que a tia Adelina de Baleizão lhe tinha oferecido no Natal passado! Será que ainda lá estava em casa, ou já a tinha dado a algum camarada mais desfavorecido na festa do Avante?? Ó Odete, obrigada, pá! És mesmo camarada compincha! Agora tenho mesmo de me ir embora, pá. Ora essa, Bernardino, foi um prazer. Até amanhã, camarada!

Respirou de alívio. Ainda lá estava e as riscas alucinantes que tanto lhe tinham desagradado, agora iluminavam-lhe o rosto. Coitada da tia Adelina. Ainda se sentia culpado ao lembrar-se do sorriso animado da velhota ao vê-lo desembrulhar a prenda e da sua cara de estupefacção, que lhe apagara aquela alegria do rosto. Que monstro se sentira! Não tinha sido uma atitude digna de um camarada! Mas agora ali estava a oportunidade para pôr tal presente ao serviço da causa e de, ao mesmo tempo, agradar à tia Adelina. Com um coelho matava duas cajadadas ou seria ao contrário? Nunca tivera boa nota no partido em sabedoria popular...

E foi assim que no dia seguinte de manhã, um Portugal estremunhado, após um zapping relâmpago sobre os canais que emitiam a eucaristia dominical, se deteve, pasmado, nas imagens do congresso do PCP. Perplexo, não consegue que o seu olhar se desvie daquelas riscas de overdose de LCD, tenta absorver as palavras mas as riscas são mais fortes e agora vem a Odete e aquele cabelo e aquela parca...e as palavras voam e ninguém as capta...voa a liberdade, os direitos humanos, a indignação, a brutal ofensiva da política da direita...e a alma cai ao chão e chora.

Numa casinha branca em Baleizão, uma velhinha tricota numa cadeira de balouço. Nos lábios exibe um sorriso e no rosto paira-lhe uma expressão de felicidade. Na televisão está o seu Bernardino com a sua camisola vestida. As riscas da malha que tricota espalham-se-lhe pelo colo. O Natal aproxima-se!

4 comentários:

suprónia insuflávia disse...

Está digna da próxima edição do Jornal Avante!

mouche albértine disse...

Acordas-me do marasmo causado pela perda de musa.. já vais ver como elas são. Malvadinha...

mouche albértine disse...

obra prima, mais um para o top ten de 2008...cabrita malvada.

Anónimo disse...

Pode ter caído mal.