Compatriotas e amigos aqui nos encontramos uma vez mais neste dia patriótico. A pátria é sempre o mais importante quando se vota nas europeias, por causa da língua escolhida no boletim de voto. Seria difícil votar se o boletim fosse em alemão, sueco ou dinamarquês. Aqueles que conhecem os logótipos dos partidos ainda eram capazes de se safar. Mas coitadinhos dos mais distraídos. E daqueles que têm problemas em fixar desenhos. Iam para ali à espera do P.S. (Partido Socialista) ou da C.D.U (Coligação Democrática Unitária) e aparecia-lhes o SCD ou o PUT. Felizmente que o cidadão europeu vota na sua língua. Assim nada há a temer e cada nação elege conscientemente os seus líderes nacionais.
É importante frisar que os eleitos são pessoas especiais. Existe o marasmo acinzentado de votantes, todos saídos de duas ou três fábricas, em filinha indiana, sorry, portuguesa, e os outros, aqueles cujo rosto conhecemos por fazerem parte da estirpe selecta. São os iluminados. Foram à escola, e, com maior ou menor dificuldade, lá conseguiram o canudo. Hoje são todos doutores. Mas doutores também há muitos. Estes são os doutores sabedores. É impressionante porque todos eles sem excepção conseguem, assim, de um momento para o outro, ser os melhores de uma qualquer área. Tanto são os líderes da agricultura, da pescaria e da medicina, como da matemática, da arquitectura e das finanças (esta é, aliás, a área onde todos eles demonstram geniais capacidades). Basta ouvi-los falar para não nos restar qualquer dúvida sobre a enorme craveira intelectual que possuem e sentirmo-nos pequeninos, tão pequeninos, quase miseráveis e, então, quando levamos a mão mirrada e suja ao porta-moedas confirmamos a nossa pequenez.
Quem é Bom é Bom e merece a Riqueza, a Fama e a Glória. Nem mais!!!
Vejam o Berlusconi. Que maravilhoso exemplar político!
E depois desta entusiástica achega ao dia nacional do europeu, passemos ao nosso tema da semana.
Hoje conto-vos uma história. As histórias são sempre coisas boas porque distraem e enquanto se anda distraído não se rumina na doença, na velhice e na morte.
Eis a história...
A velha cuspia na rua e dizia felpudos palavrões. a vida correra-lhe mal. mas ela não pensava nisso.
pregava o seu olhar azedo na cara dos transeuntes mais bem vestidos e, paulatinamente, com uma perícia de artesã, ajeitava a mira até lançar o cuspo com furor a roçar a roupa sofisticada do visado. a vítima indignada procurava advertir a velha, mas ela tergiversara e ninguém conseguia captar-lhe a atenção. vivia de esmolas e de restos de comida que lhe davam. às vezes, à noite, vasculhava no lixo pequenas relíquias. coleccionava bonecas e preferia as mutiladas. as bonecas eram o seu luxuoso afecto. tinha as suas eleitas, a quem era concedido o privilégio de aceder à sua cama. pressentia o ciúme das outras, das preteridas, mas não pensava nisso.
Também ela sofrera na pele o livro arbítrio da lei dos afectos que se esquecera de a contemplar, por isso vivia sem culpa a injustiça das preferências. ao longo dos últimos anos recolhera mais de duzentas bonecas. porém, numa noite estrelada, sem presságios nem mau-olhado, deu por si a acordar de um sonho transpirado e soturno. as duas centenas de bonecas mutiladas que recolhera do frio e do abandono, cegas de ciúme, em compasso militar, aproximaram-se da cama onde ela e mais dez bonecas dormiam um sono repousante. aí chegadas, invadiram a cama, e possuídas de um poder maligno, pelos buracos dos olhos vazios e das bocas esventradas sugaram as carnes ressequidas da velha, que rapidamente se tornou num agrupamento de ossos descarnados. enlouquecida pelo pesadelo, a velha escorraçou todas as bonecas do seu convívio. embrulhadas em lençóis velhos, foram expulsas. nem as favoritas ficaram. e assim a velha voltou a dormir e não pensou mais nisso.
Mas as noites, sem as bonecas, ficaram ainda mais silenciosas e tristes. e de dia, a raiva tornara-se mais intensa e as suas ousadias mais sofisticadas. deixara de roçar as cuspidelas. agora fazia pontaria ao alvo. e tossia em cima das caras das senhoras de sociedade, equilibristas dos saltos finíssimos das sandálias desconfortáveis, que se curvavam para lhe dar uma moeda. e peidava-se com prazer no meio do grupo de engravatados de fato, agrupadinhos em redor do chefe. às vezes era insultada. já a tinham ameaçado com a polícia. mas ela achara graça e não pensava nisso.
Odiava animais como odiava gente. alguns cães vadios tentaram fazer amizade, mas ela enxotou-os com ódio. os cães, sobretudo os cães, faziam-lhe lembrar a pieguice das velhas beatas sempre tão piedosamente preocupadas em ajudar os desalentados em troca de uma assoalhada no céu. isto para não falar das crianças, miniaturas de gente, espalhafatosas criaturas que em momentos de intrépida insanidade atreviam-se a tocar em suas rotas vestes. quando tal destempero acontecia, a sua atarracada carcaça metamorfoseava-se em gigante das montanhas e num grunhido infernal agarrava com toda a sua força aquele esquelético ser e sacudia-o até que a histérica e desocupada da sua mãe implorasse pela devolução intacta do minúsculo estafermo. desesperadas, as mães rogavam-lhe hediondas pragas. mas ela afastava-se sem qualquer temor e não pensava nisso.
Um dia começou a escarrar sangue e logo se lembrou de como poderia passar a colorir a roupa das bondosas senhoras que se condoíam com o seu sofrimento e que, para apaziguar a culpa de viverem faustosamente, lhe davam umas miseráveis moedas. a ideia fê-la rir como não tinha memória de ter rido. só o sangue em golfadas a fez parar. ansiava pelo novo dia para poder iniciar as suas experiências. e assim adormeceu e não pensou mais nisso.
Muito boa noite e até para a semana.
2 comentários:
gosto dessa senhora e do teu olhar sobre ela!
A indiferença. Essa assassina. Valem-nos as bonecas...
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