segunda-feira, 1 de junho de 2009

por favor, madame, tire as patas

MEDITAÇÃO NA PASTELARIA
«Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece.

Nunca se sabe quando começa a insolência!
Que tempo este, meu Deus, uma senhora
Está sempre em perigo e o perigo
Em cada rua, em cada olhar,
Em cada sorriso ou gesto
De boa-educação!

A inspecção irónica das pernas,
Eis o que os homens sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e ascendente,
Acompanhada de assobios
E de sorrisos que se abrem e se fecham
Procurando uma fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa parte...

Mas uma senhora é uma senhora.
Só vê a malícia quem a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!

O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!

O amor de Raul é já uma saudade,
Foi sempre uma saudade...
(O escritório
Toma-lhe o tempo todo?
Desconfio que não...)

Filhos tivemos um:
Desapareceu...
E já nem sei chorar!
Chorar...

Como eu queria poder chorar!
Chorar encostada a uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de melancolia...


Perdi tudo, quase tudo...
Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno inteligente cão.

Por favor, Madame, tire as patas,
Por favor, as patas do seu cão
De cima da mesa, que a gerência
Agradece. »

(Alexandre O´Neill, No Reino da Dinamarca - 1958)

10 comentários:

plexquba disse...

para a troca
hodie mihi, cras tibi«Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro da água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.»
(António Franco Alexandre)

mouche albértine disse...

para o plex pirómano que deita fogo ao circo e deixa a mosca a apága-lo com dedais! miguito, hein!

O PAI, A MÃE, O FILHO, A FILHA

O pai se pendeu
em lugar da pêndula.
A mãe está muda.
A filha está muda.
O filho está mudo.
Todos os três seguem
O tiquetaque do pai.
A mãe é de ar.
O pai voa através da mãe.
O filho é um dos corvos
da praça de São Marcos de Veneza.
A filha é um pombo-correio.
A filha é doce.
O pai come a filha.
A mãe corta o pai em dois
come-lhe uma metade
e oferece a outra ao filho.
O filho é uma vírgula.
A filha não tem cauda nem cabeça.
a mãe é um ovo galado.
Da boca do pai
pendem caudas de palavras.
A filha é uma pá quebrada.
O pai é pois forçado
a lavrar a terra
com sua longa língua.
A mãe segue o exemplo de Cristóvão Colombo.
Anda sobre suas mãos nuas
e agarra com seus pés nus
um ovo de ar após o outro.
A filha remenda o desgaste de um eco.
A mãe é um céu cinza
em que se arrasta embaixo bem embaixo
um pai de papel mata-borrão
coberto de manchas de tinta.
O filho é uma núvem.
Quando chora chove.
A filha é uma lágrima imberbe.

Hans Harp, in O VELEIRO NA FLORESTA (1957)

SemGrumos disse...

Somos todos tão giros e tão cultos que até dá vontade de vomitar.

mouche albértine disse...

GUROSAN...costuma dar efeito! plásticas no brasil, tb é uma hipótese (a felgueiras veio melhor!) quanto ao resto, talvez o cânone ocidental ou umas daquelas edições de bolso de saiba tudo sobre quase nada no abrir e piscar de olhos de uma ofensa anónima!

plexquba disse...

vontade de vomitar... será de uma desejada gravidez? irá ser menina? menino? será bonito? será culto?
o nariz, da mãe? a boca, do pai?
"Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabe-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como o queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Come botão
Filho? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus! Salvai-o!
Melhor não tê-los..
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
(Poema Enjoadinho, Vinicius)
Desde já, parábéns mámãe (ou pápai, ou talvez ambos ou algo além)!
ComTufos do Silva, belo nome, que tal??

MBastian disse...

“Eu não vivo cativo das boas recordações,
embora as tenha, embora me renda a elas;
são as boas recordações que de mim se alimentam,
esperando que eu as convoque
para a arena larga e lancinante
de um poema em que quase tudo seja dito,
até a presença latente das lágrimas,
até a corda tensa de uma comoção
levada ao limite insustentável de um soluço
mitigado pela grande solidão da voz.
Digo bem: solidão, porque eu pouco ou nada
tenho a ver com os escritores do meu tempo,
que teimam em medir-se
não pelo que escrevem, mas pela vaidade.
Falta-nos aqui um Victor Hugo
para dar grandeza de alma
a esta mesquinhez escrevente em que nos apoucamos.”
J.J.L

SemGrumos disse...

Pois... o vómito é mesmo consequência do solipsismo serôdio.

plexquba disse...

http://www.youtube.com/watch?v=BH-Wxt7msYw

mouche albértine disse...

: )

mouche albértine disse...

http://www.youtube.com/watch?v=iBVkq-V3jg0. ao encanto dos dias/noites de chuva e trovoada!