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Na passada sexta-feira fui acometida de um febrão súbito. Voltei a casa, após mais um dia de trabalho, e, apesar de ser sexta e uma gaja descomprometida que se preze impor a si própria obrigação de ser feliz às sextas, decidi-me, ajudada na deliberação pelo voto maioritário dos dois papos inestéticos que me cresceram simétricos na garganta, a ficar por casa.
Quando cheguei ao lar doce lar, constatei que a minha fiel e dedicada empregada - que na vêspera não aparecera para o babby-sitting privando-me de uma boa jantarada de aniversário num restaurante glamoroso da cidade onde nunca iria de mote próprio- também não estivera em casa a fazer a ménage.
Com a minha imaginação fértil pus-me logo a fazer o filme: a V. - cidadã brasileira que ajudei a legalizar com o contrato de trabalho doméstico que celebrámos e que ela, agora, ingrata, incumpria mesmo no pico da minha amigdalite - foi raptada pelo indivíduo que conheceu há um mês nos "Alunos de Apolo" e com quem já planeara casar. Como seria eu a madrinha de tal união, a V. logo se apressou a apresentar-me o Sr. X para auscultar a minha intuição feminina acerca do pretendente. Trouxe o Sr. X a ninha casa, numa noite de babby-sitting. Eu não gostei dele, mas omiti-lhe. Achei abusivo que o tipo entrasse na minha casa e começasse a ver o que estava para arranjar, tendo-se alcandorado no móvel da marquise para arranjar a persiana, sem que ninguém lho tivesse pedido. Era do tipo Macgiver, utilitário e indispensável. E eu não gosto desses tipos modelo canivete-suiço multifunções, não gosto, pronto. Mas não lhe disse nada. Agora a V. desapareceu e eu, talvez por causa da febre, não a consigo deixar de imaginar acorrentada a um varão de inox numa qualquer boîte de Bragança a fazer lap-dance forçada, enquanto o Sr. X ostenta preso numa dentadura toda de oiro o passaporte da V.
Tegúrio feio tegúrio, era o sítio onde, afinal, decidira, num erro táctico, convalescer nesta sexta-feira-vêspera-de-fim-de-semana-prolongado. Apesar da febre, o meu signo virgem e a necessidade imperiosa de ordem exterior impeliram-me a encetar trabalhos domésticos a todo o vapor. Apesar da febre pensei, a meio dos trabalhos, nada pior para um gaja sem estado civil definido que jantar sozinha numa casa dessarumada numa sexta à noite.
Estava eu nestes pensamentos febris quando o telefone tocou e a querida amiga D. me desafiou para um jantar. Lá fomos nós ao "Braço de Prata" onde, servidas por um simpático André, desfrutamos de uma comida sem grande piada mas que o vinho ajudou a deglutir. Juntou-se a nós uma recém-conhecida de cabelo louro platinado, a E., que, para além de outras peculiariedades, tem como mais recente projecto abrir uma sex-shop onde as mulheres se sintam à vontade a comprar artefactos. Bizarro é ter-me convidado - num dos pequenos almoços junto ao colégio (socialista e laico) frequentado pelas nossas crianças - a ir com ela a Madrid, Barcelona e Amesterdão para adquirir os ditos produtos. Mal sabe ela que por detrás deste meu ar arejado nunca entrei numa sex-shop ou experimentei gadjets sexuais. Gosto que ela me veja com ar de quem sabe do metier e, também, de saber que há todo um novo mundo a explorar. Mas não é disso que que quero falar. Esse é assunto para outro post.
Depois do jantar voltei a casa, recusando o convite para prosseguir a noite no bairro, e, atordoada pelas dores nas costas causadas pelo estado febril, resolvi tomar um banho quente com sal. Deitei-me na banheira, os músculos amoleceram e, coisa que nunca me sucedera, adormeci placidamente na banheira.
Durante o meu sono líquido vivi uma estranha experiência onírica.
Eu era uma cidadã de um qualquer país estranho, onde os governantes se vestiam sempre muito bem. Hugo Boss patrocionava os governantes desse meu país, dando-lhes uma aparência irrepreensível.
Todos eram doutores, mestres ou licenciados, e conseguiam mesmo dispensar as frequências das aulas, tal era a sua capacidade intelectual inata.
Antes de iniciarem os trabalhos diários de governação praticavam saudáveis os seus joggings matinais e, dizia-se, não tinham qualquer massa gorda na equação de MC. Não fumavam, a não ser, de quando a quando, atrás das cortinas e, sempre, em pleno vôo, para não contaminar a terra e os seus conterrâneos.
As poucas mulheres que integravam o executivo e o partido da oposição gémeo que com o do governo brincava ao monótono jogo da alternância nunca, mas nunca, se viam aparecer em público com um cabelo fora do sítio, e jamais lhes fora vista uma raiz branca a denunciar desleixo na pintura. Depilação por fazer não era questão, pois todas , como requisito prévio para entrar para os dois grandes partidos, e por forma a não deixar dúvidas acerca do autêntico cumprimento das quotas, se sujeitavam de antemão à depilação a laser.
Neste país tão perfeito, a acção social do Estado era praticada com tal dedicação que até a banca de apoio aos grandes investidores na bolsa, quando em maus lençóis, era patrocionada com o aval do Estado. O Sr. João do Talho, o Manel da Mercearia, a Costureira Joaquina, a minha desaparecida empregada V. - ainda que neófita no sistema contributivo- ostentavam orgulhosos um sorriso benemérito por poderem contribuir para a manutenção do sistema especulativo de incremento das grandes fortunas, julgando-se, assim, mais próximos das estrelas das novelas que invariavelmente bebem liquídos vertidos por garrafas de cristal quando chegam a casa, ao final do dia, e tomam fartos pequenos-almoços com croissants e frutas exóticas assim que a jornada começa
O primeiro-ministro deste meu país, apesar de pertencer a um governo dito de esquerda, quando acusado de ter um romance com um belo actor nacional, ao invés de mandar à merda os que se intrometiam na sua vida privada, de dizer que a sua sexualidade não era chamada para a avaliação da sua competência para governar, ou de mandar os jornalistas abelhudos questionar os governantes hetero acerca das suas preferências anais, orais, missionárias, à canzana, ou o raio que os parta, com as sua belas mulheres ou amantes hetero, não o fazia. Não. Ele era tão à frente, na sua visão de esquerda, que até se permitia ser politicamente incorrecto. E ao invés de - calculista e oportunista - se aproveitar da infeliz deixa para hastear a bandeira gasta da liberdade sexual, limitava-se, canhestro, a considerar o boato como uma infâmia.
E depois, havia ainda a distribuição amplamente publicitada nos media de computadores portáteis a crianças de terras longínquas que tinham que andar 20 km de autocarro para apanhar a primeira escola aberta, onde, ao contrário do que acontecia na casa dessas crianças, existiam tomadas eléctricas onde ligar os computadores. Que afinal não podiam ser ligados porque os senhores do governo - sempre irrepreensivelmente vestidos, sem massa gorda, hetero e não fumadores - os recolhiam, assim que as televisões se iam embora, para os entregar na próxima aldeia recôndita a outras crianças igualmemte lindas e de caras coradas pela aguardente que sempre ajuda a esquecer a falta de aquecimento nas bucólicas e pitorescas habitações do país profundo. As mesmas pobres e inóspitas habitações rurais onde, de quando a quando, por um processo alquímico nunca desvendado, se geravam, fruto de fornicações animais e transpiradas dadas sob cobertores de papa, uns gajos estranhos e risíveis que militavam, quando crescidos, em partidos que não jogavam às alternâncias e se vestiam com camisolas de malha às riscas e deixavam, desleixados, as raízes dos cabelos por pintar.
Nesse estranho país, no qual habitava no sonho, eu viajava, a dada altura, num vôo fretado, quando fui subitamente obrigada a saltar pela porta de emergência. Tudo porque um governante vestido de Hugo Boss, bem falante e muito elegante , apesar de ter recentemente aprovado uma lei anti-tabágica - talvez acometido de nervos pelas medidas que adoptava para o seu país, talvez apenas por reprimir desejos sexuais incofessados, talvez por remorsos por dar e tirar computadores a crianças alcoolizadas - ateou fogo a uma cortina toda de veludo sintético quando fumava sofregamente um cigarro que - dizem as más línguas- até era um charro feito de um belo polén marroquino. O fumo era tanto que tornou o ar irrespirável, então eu (vestida com um sobretudo cinzento tendo por baixo umas calças de pijama às riscas coloridas, tipo chapitô), a Odete ( com a sua parka com pêlo sintético de girafa) e o Bernardino ( com a sua camisola de lã às riscas), saltámos aliviados daquela máquina voadora insana, sem pará-quedas nem nada, e deixamo-nos ir, abismo abaixo, cantarolando a velha e amiga canção: avante camarada, avante, junta a tua à nossa voz, avante camarada, avante camarada, o sol brilhará para todos nós. Guiáva-nos, em mente, naquele acto suicida grupal, o famigerado ditado popular marxista: às crianças alcoolizadas e sem computadores, aos sonhadores e adeptos de mau gosto deita marx a mão por baixo.
Acordei de repente com o corpo a tremer de frio. Tinha passado um boa hora de molho na banheira como acusava a cor arroxeada da minha pele e o tilintar incessante dos dentes. Esta mosca Ofélia, quase suicida involuntária, levantou-se a custo da banheira, vestiu um robe e foi ressacar a febre e o sonho mau para o seu catre.
Apesar da febre, lembrei-me do sonho, e a minha alma enferma não conseguiu deixar de soltar uma gargalha que rolou sonora pelo chão, batucando na madeira do soalho aquela canção da Calcanhoto: Eu não gosto do Bom Gosto, Eu não gosto dos Bons Modos...