quinta-feira, 23 de abril de 2009

o velho do quico



o velho tinha um aspecto bizarro. o cabelo muito curto, quase rapado, enfeitado por um gorro de renda que lhe fizera a mulher, a lembrar os quicos judeus. possuía uma reserva de dezenas de quicos daqueles nas gavetas da cómoda do quarto, e alternava o seu uso por caprichos climatéricos ou de humor nunca revelados . o nariz generosamente largo encimado por uns óculos de metal redondos que emolduravam uns olhos negros perscrutadores. as mãos calmas, mais tarde recordadas numa pose de imobilidade serena sobre joelhos fortes. a criança, uma rapariguita de para aí uns oito anos, escutava-o atenta e respeitadora. a voz do avô era o que de mais parecido conhecia como a voz do que imaginava ser a voz de um mestre.aprendera a admirá-lo, não por qualquer imposição familiar, mas por hábito adquirido nos demorados dias de verão em que desfiavam conversas ao mesmo tempo que descascavam ervilhas, apanhavam frutas ou erva para dar à criação. o velho, mestre estucador dono de uma pequena empresa de construção já reformado, entretinha-se, nos intervalos dos rituais do campo, a fazer umas esculturas de uma espécie de anjos e seres fantásticos meios-animais, meios-humanos. a criança observava-o, curiosa e deslumbrada por ver nascer das mãos do velho as estranhas criaturas geradas na sua extravagante cabeça com quico. aprendia com ele as misturas com que se faziam as cores com pigmentos naturais que depois eram juntos à cal já fervida em bidons mágicos a que só o velho tinha serventia com um grande pau de madeira que mexia vigoroso. disse-lhe do índigo, da magenta, do ocre, do azul cião, e de outras cores que não cabiam na paleta primária da escola . as cores meticulosamente ordenadas em frascos na oficina, com umas etiquetas a lembrar as dos remédios antigos nas farmácias, eram um convite constante a um holi geograficamente deslocado e extemporâneo na curta história de viagens da rapariga. às vezes o velho deixava-a preencher os moldes de pedra com a mistura da cal e pigmentos de cor e a criança sorria com orgulho por se saber merecedora da confiança do avô. o velho tinha a mania dos versos. escrevinhava, tardes a fio, com uma letra excessivamente desenhada nuns cadernos de capas duras que guardava, depois, num cofre de madeira negra cheio de segredos. a criança assistia em silêncio. lia poemas à criança. ela escutava-o. falava-lhe tardes inteiras em rima, à espera que a menina aprendesse o código e entrasse no jogo até ao dia em que se apercebeu que a criança não tinha o dom. outras vezes, mais apaziguadoras para a criança que sabia nada mais lhe ser cobrado para além da atenção de ouvinte, contava-lhe histórias sem rimas. as histórias acabavam quase sempre com uma moral qualquer que ele lhe explicava, depois, pausada e demoradamente e que, as mais das vezes, escapava por completo à compreensão da rapariga. foi numa dessas tardes de verão que o velho lhe contou a história sem moral.

era ele ainda um rapaz, quando foi recrutado para o serviço militar. como só tinha a quarta classe restava-lhe ser um soldado cumpridor. ataviado na farda cinzenta de sarja e com o passo seguro e confortável proporcionado pelas botas pretas que acariciavam de couro os pés calejados de tanto calcorrearem descalços, o mancebo segurava firme na mão a guia de marcha para a figueira da foz quando chegou à estação de comboio da cidade de coimbra. o papelito trazia-lhe a oportunidade de viajar, pela primeira vez, de comboio. seguiu aos solavancos pela linha do baixo-mondego até à cidade costeira, a cerca de 30 e poucos km da aldeia onde tinha nascido. sabia que na terra do quartel haveria o mar. lera sobre o mar. lera muito sobre o mar. sobre a imensidão poderosa do seu azul. a ideia do mar inundou-lhe os pensamentos durante toda a viagem. seguia na companhia de muitos outros jovens homens que falavam alto com uma alegria infantil estridente. a grande maioria era analfabeta e os que não o eram pouco mais sabiam que desenhar com esforço o seu próprio e curto nome. não prestava atenção às conversas dos camaradas, submerso que estava na obsessiva ideia do mar. ao chegarem ao destino, mal saíram da estação, os homens-criança atordoaram-se com o cheiro a maresia. correram loucos para o areal e despiram atabalhoadamente as fardas contra todo o decoro bélico do recém-adquirido estatuto. num instinto primário de animal libertado dum cativeiro prolongado de ignorância rolavam-se à beira-mar, como cães, brincando com a espuma da rebentação. o jovem mancebo e velho avó contador de histórias que sonhara o mar quedou-se no paradão de cimento, imobilizado pela beleza e pelo poder daquela água sem fim. ficou ali estancado. paralizado pela vergonha de nada saber, de nada conhecer até àquele dia. deixou-se submergir por dentro por uma catadupa de lágrimas a que mais nenhum orgulho poderia servir de dique. os dentes cerraram-se de raiva e uma força cresceu-lhe nos dedos que se fecharam num novelo de nervos e ossos. à criança não lhe foi dada qualquer explicação póstuma para a história do avó recruta que viu o mar pela primeira vez. o velho deu-lhe a mão e conduziu-a com a lentidão das recordações até ao quarto onde lhe apontou, por cima da cabeceira da cama, o medalhão de prata com o desenho de umas letra a vermelho e o baixo-relevo de um punho erguido e uma mão fechada em novelo. a miúda, anos depois, pensou ter compreendido, naquele momento, a razão de ser para a ausência, na casa dos avós, da cruz de madeira com o rapaz bonito e de olhos tristes preso por uns pregos que via nas outras casas da aldeia.


( a versão pretendida era a original do sérgio, mas parece não estar no youtube)

6 comentários:

nomundodalua disse...

Eu também tinha um avô.
Conheci moções de censura e de confiança ainda antes de saber ler.
Conheci esse punho e um desenho de um senhor de bochechas exageradas.
Este nunca!
Sim senhor, esse nunca.
Onde estava o punho está a rosa. E o rapaz lá continua pendurado.
Precisava mesmo desta história, Mosca. Para me lembrar, hoje, da pureza.
Amanhã lá faremos a devida vénia ao efémero dia.

mouche albértine disse...

:)

Anónimo disse...

esse teu avô podia ser amiga de um outro avô ferroviário, que ficava com os olhos húmidos de raiva por não ter podido estudar e jurou a vida toda que nem que tivesse de comer terra destino diferente iam ter as filhas. Serrava o punho e dizia que Deus se tinha esquecido de aparecer no Mundo que tinha conhecido. Sabia a Internacional mas nos dias antes de morrer pediu que mandassem rezar uma missa... A Provinciana

mouche albértine disse...

este avô do quico - que acreditava, apesar do punho, que os diálogos com deus se faziam sem intermediário e proibiu a mulher e os filhos de irem à missa- teve um funeral religioso, por falta de alternativa! deve-se ter revolvido mil vezes na tumba. acho que se apaziguou quando a neta- então grávida de uns sete meses de um bisneto que nunca o conheceu- lhe deixou em cima da urna um molho de cravos e lhe leu um poema que não tinha nada de católico! foi o que de mais parecido conseguiu com o pedido do velho: uma urna coberta de uma bandeira partidária a rolar por sobre duas pipas de bom vimho tinto! estranhos ritos os das mortes! «quando eu morrer batam em latas, façam estalar no ar chicotes, chamem palhaços e acobratas. que o meu caixão vá sobre um burro...»

missangas disse...

Eu só não percebo porque é que o avô usava um quico de crochet...

mouche albértine disse...

ora, amiga, ele há coisas que nem as próprias netas dos avós percebem! como uns movimentos de ruptura na engrenagem do dia-a-dia. o absurdo instalado nas vidinhas! como aquelas pessoas com tiques involuntários! ou, se calhar, o velho era apenas um extravagante! mas garanto-te...nunca saia à rua naqueles propósitos...era só para consumo intra-muros!