Lembro-me que um amigo, há uns tempos atrás, acometido de um impulso positivista de classificação e simplificação, e do alto da sua experiência de grande conquistador, me disse que todas as mulheres se dividiam em duas únicas categorias : as mães e as filhas. Eu que tenho alguma dificuldade em lidar com as afirmações categóricas, retorqui-lhe, sem grandes certezas, que talvez as mulheres, todas as mulheres, ora são mães, ora são filhas, consoante as circunstâncias.
Como sabem, estou internada desde ontem para efectuar uma «artroscopia do joelho direito com menistectomia interna parcial por rotura complexa do corno posterior e termoretracção do LCA por laxidão exagerada» (sic.), e, desde ontem, deixei, por uns tempos, de ser mãe para ser só filha.
Aqui nesta cama de hospital onde me deito volto , pois, por instantes, à minha infância. A mãe sempre aqui ao lado já não conta histórias. Também não me repreende cada vez que, ao contrário das indicações médicas, levanto a cabeça da almofada – ainda tonta da prazentosa anestesia- para procurar o livro na cabeceira. Limita-se a estender-me a mão familiar, serena e meiga, acaricia-me a testa com uma festa toda de pelúcia e olha-me com uns olhos cansados de mãe- já-avó, saturados de doce, como um quente e reconfortante chá de limão que sorvo comprazida. Do outro lado da cama adivinho a presença da minha avó Beatriz, já morta, e sei que também ela me chama de «minha menina« e me agarra a mão para que não tenha pesadelos de noite. Sou, pois, toda filha, toda neta. Aqui nesta cama de hospital onde me deito.
Divido o quarto como a Dona Maria Irene. Personagem quase indescritível. Mulher de setenta e tal anos , com uma voz autoritária e de timbre grave deixado pelo vício dos cigarros. Contou-me, em conversa nocturna e cúmplice de hospital, como a vida a presenteou com quatro filhos – dois rapazes e duas raparigas – que lhe deram vários netos , como lhe roubou o marido de uma vida, há já cerca de três anos. Fala-me das suas preocupações. De como as licenciaturas dos netos já nada garantem, ao contrário do que acontecia no tempo do Salazar. Que as indústrias já não geram riqueza e dos apertos financeiros dos dois filhos empreendedores e empresários. Que a revolução lhe tirou tudo. Que lhe tiraram as terras, e afinal para quê. A revolução – penso - não a espoliou do ar altivo de Senhora Dª Maria Irene que ostenta aparatosa e solene com as auxiliares e as enfermeiras e do qual simpaticamente me poupa na qualidade de companheira de infortúnio.
Divido o quarto como a Dona Maria Irene. Personagem quase indescritível. Mulher de setenta e tal anos , com uma voz autoritária e de timbre grave deixado pelo vício dos cigarros. Contou-me, em conversa nocturna e cúmplice de hospital, como a vida a presenteou com quatro filhos – dois rapazes e duas raparigas – que lhe deram vários netos , como lhe roubou o marido de uma vida, há já cerca de três anos. Fala-me das suas preocupações. De como as licenciaturas dos netos já nada garantem, ao contrário do que acontecia no tempo do Salazar. Que as indústrias já não geram riqueza e dos apertos financeiros dos dois filhos empreendedores e empresários. Que a revolução lhe tirou tudo. Que lhe tiraram as terras, e afinal para quê. A revolução – penso - não a espoliou do ar altivo de Senhora Dª Maria Irene que ostenta aparatosa e solene com as auxiliares e as enfermeiras e do qual simpaticamente me poupa na qualidade de companheira de infortúnio.
A Sr. Dª Maria Irene geme despudoradamente para mim durante esta noite hospitalar. Padece de uma doença barulhenta, cujos pormenores me dispenso de relatar, mas que se alojou algures nas suas entranhas e a impede de defecar há bastante tempo. Reaprende, pois, após a operação, esse humilíssimo acto animal, a Srª Dª Maria Irene. Relata-me, com a intimidade que só a morte, a doença e outras maleitas súbitas consentem, os pormenores anatómicos do acto de defecar. A Sr. Dª Maria Irene sofre e olha nervosa para o relógio de pulso.« A Teresinha e a Filipa já cá deviam estar.» As suas filhas chegam, finalmente, lá pelas 16H00, e a Dª Maria Irene, depois de ter aumentado, tomada de um frenesi súbito, a agitação corporal, o volume das lamentações, após ter exigido que lhe fossem buscar um descafeinado, um sumo de laranja, uma garrafa de água, depois de ter gritado com a Teresinha porque a agarrou com força a mais quando a amparava na peregrinação dolorosa à casa de banho, acabou por adormecer profunda e serenamente na cama hospitalar. As duas filhas, de cerca de 40 e 50 anos, olharam-me silenciosas, com um sorriso aliviado nos lábios, e piscaram-me um olho cúmplice. Uma soergueu o indicador, aflorou com ele os lábios, e, após um «chiuuuuu» maternalmente soprado, sentaram-se simétricas, muito sincronizadas, muito domesticadas, como num bailado absurdo, nas poltronas de linhas direitas e cores neutras do quarto asséptico. Velam o sono da Maria Irene. Tão frágil, tão pequenina, essa Maria Irene que já foi senhora, com “S” maiúsculo, "Dona" e tudo o mais que os tempos pré-revolucionários toleravam.
As mães e as filhas estão sempre onde e quando são precisas.Vejo-as muitas vezes na rua, à porta do Tribunal, cada vez que um filho, um pai ou um irmão é preso. Têm um ar pesado, umas olheiras roxas, como aquelas com que fui presenteada à nascença, como uma maquilhagem permanente. Às vezes choram agarradas umas às outras. Amparam-se, irmãs na dor. Trazem invariavelmente roupas escuras, como as mulheres que nas praias da minha infância esperavam, entre rezas e canções tristes, que os barcos voltassem trazendo os seus homens.
Estão sempre lá as mães e as filhas. Nos hospitais, nos Tribunais, nas Prisões, nas Areias das Praias. São elas que vestem os filhos e os homens que a morte avara e bruta lhes roubou . São elas que, após aspirar os últimos odores deixados pelos homens que amaram, escolhem as roupas que estes, já mortos, hão-de levar para o além. São elas que beijam, para comprazimento fúnebre da plateia de preto, os rostos brancos e frios de mármore daqueles que as deixam víuvas, orfãs, mães sem filhos.
Pergunto-me, pois, aqui, nesta deslocada cama de hospital, com a minha mãe ao lado, a Maria Irene a ressonar e as duas mulheres que a velam, onde se acoitam os homens? Onde estão os homens que não foram presos, os que não partiram nos barcos, os que ainda não morreram? O que fazem com as duas dores, onde, como e com quem as expiam? Que canções entoam e a quem as cantam? Que testas acariciam e que mãos apertam?
Interrompo bruscamente estes pensamentos. O jovem auxiliar de acção médica, envergando a sua bata verde esterilizada, estende-me carinhosa e profissionalmente a arrastadeira. «Parece-me que ainda não urinou depois da operação», diz-me simpático e com um sorriso todo maternal nos lábios.
As mães e as filhas estão sempre onde e quando são precisas.Vejo-as muitas vezes na rua, à porta do Tribunal, cada vez que um filho, um pai ou um irmão é preso. Têm um ar pesado, umas olheiras roxas, como aquelas com que fui presenteada à nascença, como uma maquilhagem permanente. Às vezes choram agarradas umas às outras. Amparam-se, irmãs na dor. Trazem invariavelmente roupas escuras, como as mulheres que nas praias da minha infância esperavam, entre rezas e canções tristes, que os barcos voltassem trazendo os seus homens.
Estão sempre lá as mães e as filhas. Nos hospitais, nos Tribunais, nas Prisões, nas Areias das Praias. São elas que vestem os filhos e os homens que a morte avara e bruta lhes roubou . São elas que, após aspirar os últimos odores deixados pelos homens que amaram, escolhem as roupas que estes, já mortos, hão-de levar para o além. São elas que beijam, para comprazimento fúnebre da plateia de preto, os rostos brancos e frios de mármore daqueles que as deixam víuvas, orfãs, mães sem filhos.
Pergunto-me, pois, aqui, nesta deslocada cama de hospital, com a minha mãe ao lado, a Maria Irene a ressonar e as duas mulheres que a velam, onde se acoitam os homens? Onde estão os homens que não foram presos, os que não partiram nos barcos, os que ainda não morreram? O que fazem com as duas dores, onde, como e com quem as expiam? Que canções entoam e a quem as cantam? Que testas acariciam e que mãos apertam?
Interrompo bruscamente estes pensamentos. O jovem auxiliar de acção médica, envergando a sua bata verde esterilizada, estende-me carinhosa e profissionalmente a arrastadeira. «Parece-me que ainda não urinou depois da operação», diz-me simpático e com um sorriso todo maternal nos lábios.
http://www.youtube.com/watch?v=Noy4M91Xj08
5 comentários:
Eu, que deixei de ser filha e só agora sou mãe fiquei comovida. Beijos.
Mosquinha estás mesmo de asa ferida retida nalgum mosquiteiro?
Sim belinha. De asa ferida. agora retida na minha cama por pelo menos mais uma semana. O raio do menisco..
Um grande beijinho mosquinha. Creio que a tua força te vai em breve deixar voltar a voar. Afinal o que é um menisco para uma mosca forte como tu!
Esta semana, quando condenei um filho, a mãe caiu no chão, com um barulho seco. Lembrei-se deste texto, mosca, e de um outro do Eugénio de Andrade, chamado Mãe, que é perfeito. Lê-o mosca, que vais gostar.
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