quarta-feira, 5 de novembro de 2008

ERA UMA VEZ UMA MOSCA NA AMÉRICA





«Que epicamente celebrada bacia não era essa América de então!

God´s own country!

Nomeada só com as letras iniciais dos seus pre-nomes:

USA
Como o nosso amigo de juventude, de todos conhecido, inconfundível!

Essa bacia insgotável-dizia-se-

Recebia tudo o que lhe caísse dentro, e transformava-o

Em duas vezes duas semanas até à cognoscibilidade!

Todas as raças desembarcadas neste voluptuoso Continente,
Renunciavam com o maior zelo, esquecendo as suas características mais arraigadas

Como maus hábitos,

Para velocissimamente se fazerem como os tão presentes por cá!»

Bertolt Brecht, «Poemas e Canções»

Aproveito o entusiasmo fresco da vitória de Obama para falar da América, da muito nossa América. Sim, a mosca tem, de quando a quando, estes ataques de sentimentalismo, pelo que não estranhem este pró-americanismo súbito. Todos temos as nossa fraquezas, e o direito a verter uma lágrima comovida ante "um instantinho de beleza" e um " gafanhoto chamado surpresa", citando o nosso amado patrono bloguista. Sentimento é o que não falta quando se fala da América, daquela, da do Norte, a da bandeira vermelha, branca e azul, a das estrelinhas. God Save America! Essa mesma, a dos indios e dos cowboys, das estrelas bruxuleantes de hollywood, da coca-cola, dos macdonals e quejandos, a dos homens de ombros largos e queixos salientes a fumar Malboro a ocuparem sozinhos os passeios, aquela dos bares de estrada de bancos corridos, onde se servem donuts e odorosos cafés extra-large a evolarem-se das mugs, essas cafetarias (tem um nome próprio de que não me lembro) com amplas vistas para desertos onde bolas de cactos secos rolam eterna e cinematograficamente pelo asfalto das estradas onde fogem as Telmas e as Louises deste mundo... falo dessa América onde nunca fui, e , que por isso mesmo, nunca perdi.
Dessa América que, adolescente, me comprazia a desdenhar, como símbolo de um liberalismo e de um puritanismo que, do alto da arrogância e da estreiteza de vistas de mosca esquerdófila, julgava constituirem a nata dos pecados capitais. Escondia, então, culpada - e por falar em natas me confesso- o deleite imenso que era saborear aquele batido cremoso de baunilha do Macdonals, entrando à socapa no temível antro capitalista do palhaço Ronald nas horas mortas e clandestinas dos shoppings centers.
Falo dessa América tão mais profunda que mais tarde me foi revelada por Faulkner, pela Flannery O´Connor, pela Carson Mccullers. Da América citadina do Paul Auster, do Michael Cunningham, da América da cidade cosmolopita de Nova York e do seu bardo Woody Allen (Na fase aúrea e pré incestuosa. Não adivinhem qualquer censura puritana na referência lateral, mas acho que comer a filha adoptiva chinesa exigiu tanta energia que acabou por lhe consumir a criatividade que pereceu, coitada, no exílio londrino.).
Quero falar dessa América "bacia" que recolheu, em tempos, com as suas generosas e amplas pernas abertas, os naúfragos, expatriados e refugos dos países, terras e lugares mais recônditos e os metarmofoseou, por artes de engenharia duma máquina modernista do Whitman- sempre a fazer fumo e barulhos mecânicos indescritíveis- nos afro-americanos, nos hispano-americanos, nos sino-americanos, nos sei-lá-que-mais Americanos. Esses, esses gajos as mais das vezes oversized, obesos mórbidos, amarelos, pretos, vermelhos, brancos sanguíneos, assentes em snikers Nike, tamanho quarenta e muitos, com os seus caps dos New York Yankers enfiados na tola, uma mão a segurar nos pacotes XXL de pipocas , ou no pacote XXL de ice cream, e na outra a tal bandeirinha, a das estrelas, e riscas vermelhas, azuis e brancas.
Essa América que sintetiza, tanbém por artes de engenharia mecânico-orgânica, como mais nenhum outro país, o que de melhor e de pior tem a humanidade. E que por issso mesmo me atrevo, também - eu que nunca lá fui- a chamar de minha, de nossa América.
Essa América- a mesma que criou Guantanamo, feriu de morte Hiroshima, gerou o Ku Klux Klan, instigou a baía dos porcos - pariu hoje, generosa, uma vez mais, o velho sonho americano, fazendo de um negro, de origens quénio-havainas humildes, o primeiro presidente negro da América. O primeiro presidente negro da humanidade! Parabéns, pois, sua puta amada, velha e doida!
Perdoem-me, pois, o grito rejubilante e incontido, e que segue no tom mais afinado que a minha falta de patriotismo congénito permite:
God Save Obama!
God Save Us From America!
God Save Us From Ourselves!

(pequena nota de roda-pé incaracterística:espero que o gajo não me deixe ficar mal, porque afiancei ao meu moscardo mais velho, com um tom solene de mãe a dizer coisas sérias para a posteridade e uma lágrima tremelicante e teatral no canto do olho, que o dia de hoje era um dia histórico, e que talvez estivessemos a assistir ao início de uma nova ordem mundial! A verdade é que também lhe disse que os Buraca Som Sistema eram um produto da força nascente dos subúrbios, o que soube, há pouco, pela boca de um amigo mais esclarecido, não ser verdade. Não seja, pois, em prol da minha credibilidade materna, o nosso menino, um "Barack Som Sistema", roubando a frase ao estupor do velho sábio chinês.)








3 comentários:

nomundodalua disse...

Cuidado Casimiro.
Não se torne o amador na coisa amada.

missangas disse...

Li o teu texto de um só fôlego. Só parei no fim, emocionada. Eu! Pelo menos durante esse fôlego acreditei que o mundo a partir de ontem se tornou um lugar melhor...

Belinha disse...

Como eu gostava de ter essa tua capacidade Missanguinhas.... Pelo menos somos m ais felizes quando e enquanto acreditamos....