domingo, 4 de janeiro de 2009

uma história para acordar




A BELA ACORDADA
Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita,
as pessoas diziam-lhe:- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias.
Só os animais gostavam sempre dela,
tanto quando era bonita como quando era feia
como agora que era sempre feia.
Mas o amor dos animais não lhe chegava.
Por isso deitou-se a um poço.
No poço,estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe.
Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou
e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher
e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado,
a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos.
E a mulher ali era tão feia que não era feia.
Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher,
o rei apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas,
uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe.
O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça.
A mulher apanhou a azeitona e comeu-a.
Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona.
E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.»
In Adília Lopes – OBRA – A Bela Acordada, pag 300, Ed. Mariposa Azul, Lisboa

9 comentários:

norrin disse...

o peixe é que se lixou...

Anónimo disse...

Acabei agora de comer
um campo de tulipas
Não sei o que fazer
com tanta beleza nas tripas

Jorge Sousa Braga
O Poeta Nu

mouche albértine disse...

Oh, Oh, alguém que partilha o gosto pela poesia comestível...welcome
«Em frente à casa amarela em Arles havia um canteiro de lírios. Ou seria na cabeça amarela de Van Gogh que esses lírios floresciam? Inclino-me mais pela segunda hipótese. Ou não sofresse Van Gogh delírios.», J.S.B.

suprónia insuflávia disse...

Isto é o que eu chamo amor em sentido estrito! Com sexo e tudo. Um dia tragiversarei sobre o amor emk sentido lato, ou o que quer que isso seja.

Anónimo disse...

Fico à espera de ler algo trancendente, mas nada de espumas, sff.

mouche albértine disse...

estamos numa fase de espuma dos dias... nada de novo sob o sol. não há sol. faz um frio que tolhe as almas e a inspiração ... a expiração só embacia vidraças por onde não se enxerga a ponta de um corno! transcendente??? «Quem? O Infinito? Diz-lhe que entre, faz bem ao infinito ficar entre a gente!»

Anónimo disse...

tomemos lá, então, um copo de sol. e se desse vinho a alma embaciar, o infinito, sobre seu túmulo, irei escarrar (ok, a inspiração tirita - a espuma do boris anda perto mas onde se meteu o arranca-corações, que raio...)
"Busie old foole, unruly Sunne,/Why dost thou thus,/Through windowes, and through curtains call on us?"... The Sunne Rising, J Donne, the collected poems, pag.4
e poesia combustível? para aquecer o lar??

mouche albértine disse...

Uma combustão lenta para aquecer esta noite fria:
«Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim.
E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe.
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o»
A.Ramos Rosa, «Um caminho de palavras».

Anónimo disse...

E uma combustão lenta para esquecer o dia:
«Poema dum Funcionário Cansado
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.»

id, in Viagem Através duma Nebulosa